segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Cama desfeita

Côa-se a luz por entre as persianas descidas sobre a noite que pouco a pouco se faz dia. É uma luz lavada que se estende alongando-se até nós. Ao meu lado dormes ainda o sono de quem se abandona em porto seguro, chegado a casa após uma longa ausência. A tua pele dourada trás marcas de outras épocas em que vivias perdido longe de mim. Pele morena, sardenta, de quem sempre escolheu viver junto ao mar sem olhar a ventos ou marés. Pele onde eu conheço cada sinal e cada ruga, cada ponto de partida para viagens sem fim com um regresso nem sempre desejado. Sinto-te respirar nesse abandono de quem não se sabe observado, ou se sabendo não se importa porque sabe que está em casa sua.
Lembro-me de outras noites nossas sem dormir, noites em que fugíamos para o mar, sob um céu de estrelas cadentes, e eram tantas que choviam sobre nós que muitas se escapavam ao contar dos nossos desejos. Do mar tínhamos o som das ondas e o reflexo que dele nos chegava no luar. Pedaços de luz transformados em brilhos mil que molhavam os nossos olhos. E era tanto esse mar que se fazia infinito azul aos nossos pés. Éramos então felizes na esperança do amanhã, ainda que esse amanhã não nos pertencesse. Não importava ainda assim, porque cada um daqueles instantes era o mundo. E esse mundo era só nosso.
Assim como agora é só nosso este amanhecer sobre a nossa ausência. Perdemo-nos um do outro em portos inconstantes. Corremos mundos diferentes em ânsias perdidas de descobertas vãs. Para mais tarde ambos voltarmos à praia que foi nossa, lugar onde ambos ancorámos os nossos desejos por cumprir. Mesmo sabendo que era tarde demais para os encontrar. Outros antes de nós os viveram e chamaram seu ao que só a nós dois pertencia. De nosso não sobrou nada. Ambos regressámos de mãos vazias de tantas viagens, para vermos os nossos tesouros saqueados.
Resta-nos apenas a manhã que agora se faz dia. Olho para o meu lado e não te vejo. Toco as rugas no lençol, a marca na tua almofada, sinto o teu cheiro que invadiu a minha pele, mas não te vejo mais. E nesta noite que agora se acaba, não sei se te vivi se te sonhei.

sábado, 29 de agosto de 2009

Marionetas de vida

Linhas cruzadas, vidas trocadas, sons indistintos que chegam de longe sem sentido. Luz baça e sem esperança num túnel sem fim que converge num ponto que se faz longe a cada passo mais.
No infinito está essa fuga que se quer real mas que teima em escapar-se num ápice, com um avanço imenso sobre a partida que se afigura sempre falsa. O espaço alarga-se, aumenta a olhos vistos, mas só o vazio chega, nada mais, preso num avesso de vida. Dor líquida que gota a gota se mistura e se perde num silêncio sem nexo. Acabam-se os sons, também eles rendidos ao silêncio que sobranceiro se impõe num vazio ainda maior.
O universo dilui-se e mistura-se sem forma aparente, rouba os sonhos, a esperança e a luz na sua ausência. Céu sobre o mar ou mar que cobre o céu e das nuvens faz algas, rochas, abismos, lugar de ondas perdidas que se esgotam e se gastam sem encontrar abrigo. Tudo cai, rola e se parte em mil pedaços e reflexos do que fora em tempos.
Onde está esse fim que leva ao princípio? E o princípio, que nunca se acaba, perde-se em meandros ocos que lhe roubam o sentido e a forma e o impedem de chegar ao milagre que se espera. O caminho estende-se em frente, aos círculos, em fases repetidas e conhecidas e que mesmo assim não se evitam.
Marionetas de vida que sozinhas sempre se perdem em busca do caminho certo. Por falta de ser não vêem que os caminhos são iguais aos de outras vidas e que as vidas se trocam, se ganham e se perdem, mas que nenhuma é na verdade de ninguém.
Mas do meio do nada rasga-se o vento em sopro de vida. Sobre a escuridão do instante perdido brilha um fio de luz que se agarra à vida que se quer livre e feliz. Trovão e relâmpago que destrói mas ilumina por segundos e que do caos faz instante parado no passado. E assim da vontade faz-se vida. Cortam-se os fios um a um. As marionetas ganham vida e procuram outras vidas. Para cortarem outros fios e com mais amor fazer mais vida.

Se me quiseres


Se me quiseres procura-me junto ao mar
Numa duna abandonada às mãos do vento
Num caranguejo preguiçoso sobre as rochas
Ou num raio de sol que se fez onda

Vê-me na gaivota sobre o mar
Perdida para além do horizonte
Num pôr do sol laranja feito esperança
De um regresso certo ao outro dia

E chama por mim para que eu venha
Onda feita espuma ao teu encontro
Beijar os teus passos sobre a areia

sábado, 22 de agosto de 2009

Live and let die

Por vezes a vida sente-se por instantes intermitentes, liga desliga, sem rumo e sem lugar, quando as referências que um tempo tudo foram, de repente deixam de ser. Fica para trás o que em tempos foi âncora, lugar do sonho onde a esperança viveu aninhada à espera de ser, por escolha imposta, quando a vontade já nada mais pode fazer.
Live and let die, há que sobreviver mesmo que tudo o mais morra, liga/desliga, on/off, aos soluços por entre instantes de vida misturados com espaços negros vazios que sugam os sentidos e a consciência, para mais tarde reagir, acordar e continuar a viver. Escolhas, lugares, tempo, uma vida que de tão perto senti minha, de repente deixa de ser. De tal forma que a recusa me invade, e prefiro divagar sem rumo, por outras vidas que ainda estão para descobrir por entre a minha.
Por me encontrar no deserto acreditei na miragem que tu eras. Escolhi acreditar no teu olhar, sem querer saber o que a tua boca me negava. Escolhi acreditar que um dia não haveria mais dúvidas, nem diferenças entre razão e sentimento, que o meu amor te tocaria e te mostraria que afinal o meu sentir não mais era do que um eco do teu. Pura miragem que nem sonho foi.
E da miragem fez-se nuvem que partiu. E olho para ti e nada vejo. Queria ainda agarrar um pouco daquela imagem que de tão cheia preenchia quase a ilusão do meu afecto. Mas nada sinto à minha volta no deserto. O vento apagou os teus passos e eu não quis sequer guardar em mim a recordação do sentido que levaste quando te foste. Foi a tua essência que partiu e se afastou de mim. Ou eu que cansada parti, talvez. Sinto que não mais existes. Mas ainda assim, olho à minha volta como se te procurasse. Porque sinto a tua falta na miragem do meu oásis que sem ti perdeu a sua nascente de vida. E eu penso e não sei. Se o que me faz falta és tu mesmo ou apenas a miragem que em ti via e na qual eras rio que corria solto por entre as mil folhas verdejantes que para ti só criei no meu deserto e onde, sem saberes, aplacavas a minha sede.
Dói-me ainda não te ter, mas mais ainda dói-me não mais te querer. O vazio que deixaste atrás de ti parece-me agora absurdo na sua imensidão sem medida. Querer-te bem fez-me sentir-me bem, até que a mágoa chegou e num instante abafou o coração e calou a razão, se alguma havia.
E assim me vejo agora, abandonada de mim, com labirintos abertos sem camuflagem que eu quero rapidamente fechar, mas que sei ter de percorrer lentamente um a um. Como se de uma limpeza higiénica se tratasse, um corte cirúrgico de sentimentos, pois nada pode ficar para trás esquecido para mais tarde ser inadvertidamente encontrado. Os encontros com o passado doem e impedem o futuro que se quer fazer hoje.
Mas uma vez os labirintos fechados e esquecidos sob as dunas, poderei olhar para o céu sobre o deserto. As estrelas lá são mais brilhantes. Uma me guiará até a um novo oásis por descobrir.
E que esse novo oásis não seja mais uma miragem desta vez!

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Caminhos

Entro no carro e sigo sem destino. Estradas que ainda não percorri chamam por mim. Outros as conhecem de todos os dias talvez. Eu não. Hoje quero uma estrada nova que se rasgue e se mostre e me deixe acreditar em caminhos ainda por descobrir. Do nada um caminho novo que surja e se faça escolha. Hoje procuro, mas não quero encontrar. Ainda não. Hoje não. Quero apenas sentir a procura e esperar pelo encontro de uma estrada nova por descobrir.
Outros caminhos me trouxeram aqui. Tantos caminhos, tantas escolhas, virar à direita ou à esquerda, seguir em frente, mas nunca parar. Onde estão os caminhos que me deixaram aqui? Que escolhas certas e erradas me levaram ao início desta estrada que eu não quero ainda conhecer mas já vejo diante de mim? Se ali atrás tivesse seguido em frente em vez de virar à direita onde estaria eu agora? O que haveria lá para mim e em que pessoa me teria eu tornado? Como saber onde e quando escolhi o que sou, o que quero e não quero, o que procuro por fim? Que caminhos fiz afinal? Quais os certos e em quais deles me perdi?
Lembro-me de tantos, tantos me pareceram iguais e me confundiram com as suas diferenças. Tantos me pareceram amenos, caminhos já trilhados e experimentados por outros, com certificado de qualidade, caminhos seguros e sem surpresas e que afinal se mostraram vazios e sem sentido. E me obrigaram a regressar já cansada da viagem, exausta em caminhos tornados labirintos sem sentido onde me perdi. Nessas alturas em que por falta de coragem de me aventurar por caminhos a desbravar, me deixei guiar por caminhos certos e bem sinalizados, mas tão sombrios e sem qualquer forma de vida. E em tantos outros, aqueles que descobri em esboço ainda antes de serem caminhos, aqueles que eu abri em mim à força de arranhões e tropeções, arriscando chegar a um desfiladeiro sem saída ou a um abismo sem fundo, eu me senti tão feliz, apesar das dores das feridas e dos arranhões profundos, apenas pela descoberta e pela coragem de ter seguido em frente, na minha escolha, no meu caminho a descobrir, por mim feito meu.
E assim cheguei aqui. No prazer da estrada não me importa agora o destino. Esse seja o que quiser, não é a chegada que me move e me faz desejar partir. Desde que a estrada seja minha e escolhida por mim eu posso fazer caminho. Mas hoje não. Hoje ainda não. Espero um sinal que me há-de chegar. Quando o coração bater mais forte. Na busca dessa estrada, só ele saberá sempre qual o melhor caminho.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Como eu gostava de ser gato por um dia

Como eu gostava de ser gato por um dia
Ou uma vida, das sete que os gatos têm
Sair em busca do sol, escolher uma pedra, numa escada um degrau de subir ou de descer
Com algumas ervas perfumadas pelos cantos
Numa escada com muitos degraus do céu à terra junto à relva
Escolher o mais liso e o mais quente
Com muito sol
Liso e amarelo de calor
Andar de cá para lá e de lá para cá, cheirá-lo e percorrê-lo todo por inteiro
Devagar, languidamente, sem pressa de chegar ou de escolher
E só então instalar-me lentamente
E ainda espreguiçar-me, esticar uma pata, garra a garra com cuidado

Sentir todo o meu corpo devagar, como se o tempo me esperasse
E todo o tempo do mundo fosse meu
Sentir a brisa no meu corpo, também ela apenas minha
Fechar os olhos, sentir o sol
Dormitar atenta, sem pressa de acordar
Sentindo o mundo inteiro no espaço daquele degrau
Com muito sol
Liso e amarelo de calor
Pudera eu ser uma bola de pêlo felina, abandonada ao sol no conforto de um degrau
Feliz no prazer de nada fazer e só sentir
E de garras recolhidas na vida

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Parabéns Diogo!

Desejo que cresças com o teu coração pleno de doçura, amor e generosidade. Que não deixes nada nem ninguém destruir a esperança que nele vive. Que tenhas a força necessária para perseguires os teus sonhos e a coragem de desistir sem mágoas do impossível. Que saibas acrescentar à tua realidade um pouco de ilusão para dares mais cor à tua vida, mas na medida certa, para não transformares a realidade numa ilusão. Que saibas dar, partilhar e espalhar um pouco de ti à tua volta, sem impor vontades mas criando desejos. Que saibas esperar o melhor, preparando sempre o teu coração para enfrentar o pior. Que nunca percas a confiança, nos outros, no mundo e principalmente em ti próprio. Que nunca deixes de desejar. Que nunca deixes de acreditar. Que sejas acima de tudo feliz e saibas espalhar essa felicidade à tua volta. Parabéns pelos teus nove anos, Diogo!

sábado, 8 de agosto de 2009

E o fim chegou

E o fim chegou. Agora espero sentir a dor que há-de chegar também. Espanta-me contudo nada sentir. Flutuar sobre um vazio sem nome, imenso e absoluto que de repente ocupou todo o lugar que o meu sentir por ti reclamava. Do tudo fez-se nada, sem nome, sem tempo, sem história ou futuro. Sobrou o nada onde há pouco vivia a imensidão do infinito. E a dor não chega, só o silêncio, quase uma paz que me vem de não mais esperar nem querer. De não mais te querer. De não mais seres parte de mim e me teres deixado só em nome de uma amizade sem amor.
Foste palavra por dizer, livro por ler, dom por partilhar, mar sem maré nem maresia. O beijo que não me queimou, as mãos que não me tocaram, o amor sem amar, o fim sem início. Foste tão pouco afinal e eu que sempre quis tudo e nunca o tudo me chegou, fiquei suspensa e parada por ti e exigi tão pouco de mim.
Sem acreditar em fadas nem princesas, armei-te cavaleiro. Vi em ti bravuras irreais, o encanto de um príncipe encantado que seria o meu príncipe de encantar. Não vi que jamais enfrentarias tormentas e dragões para me resgatar da minha torre encantada. Esperei por ti mesmo assim, mesmo sabendo que contos de fadas são coisas de crianças. Erro meu. Esperei em vão. Desisti. Espero agora a dor que me há-de chegar. A dor do fim do meu amor por ti.

domingo, 2 de agosto de 2009

Assim é a amizade


Já vivi sem amor, sem amar e sem ser amada. Já vivi a esperar por dias melhores até descobrir que tinha de lutar por eles. Já vivi sozinha, com uma gata, com marido. Já vivi com saudades do passado a desperdiçar o presente. Já vivi a esquecer o presente e a desejar o futuro.
Mas se olhar para cada um dos meus dias vividos, vejo sempre amigos comigo. Nos bons momentos na alegria da partilha e nos maus momentos no alívio da dor.
Os amigos da minha vida inteira são escolha minha. Cabe-me a mim merecer a cada dia ser também escolhida por eles. Se bem que a minha vida de hoje resulte das escolhas solitárias que fiz, sem os meus amigos eu estaria longe de mim, perdida no início de um caminho que sozinha não conseguiria sequer vislumbrar.
Houve amigos que chegaram e ficaram, atrevo-me a dizer para sempre. Houve amigos que a certa altura partiram e deixaram lembranças e saudade. Outros chegaram há pouco mas parecem fazer parte de mim desde sempre.
Amigos são coisas de alma, a amizade não se mede de outro modo que não seja o sentir em conjunto e o partilhar desse sentir. Assim é a amizade.

sábado, 1 de agosto de 2009

Idades


Ontem passou mais um ano sobre o dia em que nasci. Esse contar do tempo de uma vida assim em anos sempre me estranhou. Não convivo bem com esse espartilhar de uma vida em tempo que eu só sei medir em momentos, que valem pelo que marcam e não pelo tempo que duram. Nasce-se e morre-se num segundo e entre esses dois segundos vive-se uma vida. O que fazer dessa vida entre um segundo e o outro senão vivê-la? O que importa em quanto tempo se viveu, senão o que se viveu? O que importa se vivemos mais um ou menos dez anos, se nada fizermos com esse tempo que nos é dado para viver?
Não gosto de classificar as pessoas. Nem em anos, nem em raças nem em credos. Prefiro classificá-las pelo modo como estão na minha vida e como eu estou na vida delas. É infinitamente mais simples ver com o coração do que com os olhos, basta sentir, mesmo de olhos fechados sabemos.
As pessoas não são lineares nem óbvias, por isso são fascinantes. A capacidade de cada um de nós de se transformar, de se superar, de lutar, de sonhar e de desejar marca-nos de modo diferente em ocasiões diferentes. Houve momentos em que me senti mais jovem mas menos madura, confiante e segura de mim, assim como houve outros em que me senti infinitamente mais velha, mais desanimada e conformada e isso mais não são do que estados de espírito que eu não consigo traduzir medidos em anos de vida nem localizar em idades, mas sim em sentimentos de esperança, vontade e felicidade. Há momentos em que me sinto uma criança em início de vida e noutros sinto em mim o peso da idade do mundo. E não serei a única a sentir-me assim certamente.
Tudo parte de uma atitude, neste caso a idade de cada pessoa é a idade da sua atitude perante a vida. É essa atitude que marca os momentos de uma vida, que afasta rugas e deixa o eterno brilho da juventude em cada um de nós. Quando olho para uma pessoa o que eu procuro ver nela é a felicidade e não a condenação do tempo que sem se saber bem porquê julga que uma pessoa saudável e autónoma pode ser demasiado nova ou demasiado velha seja para o que for. Muito menos para ser feliz.